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domingo, 17 de agosto de 2008

Cartas a Cioran - I

Ontem fumei dois maços de cigarro e me engasgava bebendo água. A sede era grande, mas o medo do mal estar dissuadia ainda mais. Uma afta doía na ponta da minha língua, e eu a ralava no filtro do cigarro aceso. Minha cabeça coçava; ferida ela latejava, mas não conseguia parar. Por que parar se ela coçava? Quase deitado e completamente torto, li algumas páginas do livro que encontrei no sebo. Tão seboso, o livro fedia a resto; não podia ser diferente, ele jazia em sua inércia nas catacumbas da tulha de entulhos. Pensei em quantas mãos perscrutaram aquelas páginas ásperas e cheias de rejeito celular, esperando encontrar algum conhecimento.

Toda a movimentação parece estranha agora. As ruas? Sempre cheias de pessoas; coisas para cá; coisas para lá. Barulho; ruído das gentes que parecem não cansar. Ai, que cansaço!

Cá, em minha mente, quase nada faz mais sentido. Nem sentindo mais estou. O que sentir? Alguma coisa vale mais a pena sentir, ou pensar? Carcomi as beiradas carnudas dos meus dedos sem antes devorar o cálcio das unhas; e nem uma mísera gota de criatividade foi mijada. Descobri que não ouvia bem. Para quê ouvir, se tantas besteiras são ditas? Constancia certa é a da fluidez de estupidez. O pensar das gentes é tão volumoso quanto um panfleto de promoção. O falar então; caudalosa diarréia de disparates.

Lembro do hospital. As fisionomias de beatas; mártires. Que lugar estranho! Os sujeitos estão sempre com a cara de quem aguarda o ministério episcopal. Isso me leva a pensar que hospitais são como igrejas, todos aguardam em silêncio respeitoso, uma cura. O médico, aquele padre com ar de quem conhece o caminho, segue guiando o rebanho.

Já repararam nos porteiros dos prédios? Na noite eles ligam seus rádios; ouvem dormitando, os radialistas da madrugada falarem em voz sonolenta os sacrilégios que o dia censura. São colunistas do acontecido; jornalistas da rua. O tédio da escuridão perde vigor quando amanhece o dia e eles estarão quase eufóricos e prontos a informar as efemérides. Cada morador é um ouvinte em potencial, e eles pararão para cumprir seu papel no teatro das banalidades da vida. Queria saber como são eles em suas casas, com suas esposas e filhos. Na mesa; no almoço; no sofá.

E os mendigos? Outro dia encontrei uma cena curiosa. Dois mendigos discutiam desgraçadamente. Debatiam o jantar (era o que eu entendia da situação). Acusavam-se mutuamente de traição alimentar. Sempre soube que a fome tornam os homens menos racionais e mais instintivos. Não sei se banqueteados seriam mais racionais do que não eram. Os dois quase se matavam, enquanto a mulher desgrenhada deitada debaixo do cobertor cinza, comia a marmita pantagruélica. Duas marmitas para três infelizes!

Minha preocupação ganhou novos contornos com a construção ao lado. Bate estaca, cedo já me incomodava. Britadeiras, marteladas, caminhões entrando e saindo. Descobri quanto somos sugestionáveis. A barulheira condicionou-me. Passei a pensar nos intervalos da barulheira; piscava no golpear e respirava em seguida. No dia dominical, a pausa do trabalho é certa, se não fosse o senhor amolador. Sujeito com uma voz que lembra uma hiena, e potencialidade para cantor de uma daquelas baladas nordestinas. E devo reconhecer, ele nunca se fez de rogado quando era preciso atormentar o dia de descanso. Abria a bocaça e dava início ao mantra: “Amoladoooorrr, amola faca, facão, canivete, para a senhora cortar seu salmãããooo”. O lazarento ser não se cansava, mas mantinha pausas de cinco passos; momento no qual empurrava seu carrinho. Carrinho que grunhia como um carro de boi. Com ressaca da madrugada de sábado para domingo, e contaminado pela raiva, eu abri a janela rastejando, e com o restante das forças que me restava, gritei: “Amolador filho de uma %¨&#$!@, você é uma amolador mesmo. Amola todo mundo. Suma daqui seu filhote do diabo!”. O puto calou-se por algum tempo. Ouvia o ruído do carrinho se distanciar. Há uma certa altura, escutei ele retomar a ladainha ao longe. Não sabia ele do risco que corria.

Em casa a paz parece reinar em alguns dias. E a leitura pode ser feita sem mais preocupações. Mas contudo, ainda estava lá aquela obra fugitiva. Alguma coisa ainda cuspia aqueles caracteres ocidentais. Verborragia da velha obra; usada tantas vezes e por tantos diferentes. Velha prostituta! Segue pela eternidade em seu ofício de ser usada. Talvez um dia encontre o descanso. Creio que o dia em que te depositar em algum sebo, você encontre esse repouso. Volte a jazer, e não terá mais nenhum dono. Ou ainda te jogo no lixo para garantir seu futuro.

      Ando muito estranho mesmo. E a culpa é sua, Cioran.

     Ass: Bernardo Waechter Dayrell.

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